Dose de fim
Estou apaixonadiça.
Você, parece-me, não soube me desvendar, e por isso, não soube me compreender, como o pulso ritmado preciso dos mestres que forjam uma lâmina brilhante e perigosa. Você me amassa a baixa temperaturas, pois não compreende, ainda, que sou vulcânica, primitiva, e só assim, divina. É quando todos os meus átomos podem ser vitimados pela maleabilidade precisa que atinjo, que sem tuas mãos, não hão, qualquer sejam estes dias em que eu sobreviver, não hão de me ser úteis. Confio em ti. Sei, e espero, que ainda me entendas.
É que você ainda pode, sei, alinhar comigo os hemisférios da minha dinâmica complicada, que branco e preto só me permitem delimitá-los sem, como que por profecia, fazê-los alinhados como, lindamente, penso, ficariam se assim fossem. Enquanto isso, convivo só com uma ideia de que sejam bonitos alinhados, quer realmente sejam ou não. Digo: tenho a sensação quase monolítica que são. Bonitos. Bonitos como uma terra desejada na estampa de um cartão-postal.
E se necessário for, continuarei enigma de mim mesma, como um poema que não foi escrito porque não foi sentido, um poema que se teve a sensação de existir mas que não teve a delicadeza necessária para tornar-se palavra. Um poema é um enigma que não se soube resolver, ausente de uma solução que não usou da palavra para ser a si própria sua própria existência. Um poeta que não sabe a mística delicada das combinações da palavra escrita não saberá jamais decifrar seus poemas. Talvez tortos. Talvez poucos. Talvez inacabados. Talvez incompletos. Indecisos. Feios. Escassos. Preguiçosos. Vacilantes.
Eu estou só, sentada ereta, tentando não me encarar no espelho covardemente colocado contrário ao balcão, após esse vão ali por onde o sapato do barman pisa, e estala, e gruda, um vão sujo que há de ser limpo quando todos forem embora mais tarde, e que há de pagar sua covardia de me separar do espelho que quero quebrar com um murro pra que a minha cara pare de ser infernalmente refletida. Eu poderia arrebentar essa taça na cara daquele espelho, vencendo a profundidade desse vão sujo em que o barman perambula, profundidade essa que aumenta duzentos metros a cada dose, parece.
Agora sou uma alpinista.
Mas o barman passa e de repente eu me lembro que só estou a poucos centímetros do piso que deve estar escorregadio a uma hora dessa. Eu surjo novamente no espelho. Eu poderia acertar essa porcaria com essa taça, não sem antes talvez pôr em risco uma de minhas amigas colocadas logo em frente à minha imagem diabolicamente refletida. Certas coisas devem ter sido contadas sussurradas ao pé do ouvido pelo demo. Como o espelho, por exemplo. Um de nós, ancestral, ouviu, certa vez, como poderia fazer uma réplica de si próprio, da boca do próprio Coisa.
Só pode.
E que agora, talvez tenha ele previsto lá naquela primitiva ocasião, estaria servindo para aparar as garrafas coloridas, que a essa hora prefiro chamar de minhas amigas, que tapam um pouco minha imagem refletida. Geniais. Elas são divinas. Todas devidamente prateleiradas, coloridas, desniveladas de seu líquido. Eu estou lá do outro lado do vão-abismo, ao lado delas, que com certa vergonha de mim mesma me escondem, e que daqui a pouco virão pra cá, continuarem me escondendo.
Geniais, eu repito.
Não são mais geniais porque meu reflexo lá não pode bebê-las. Meu reflexo horrendo, e vil, porque criado por uma obra do demo, uma obra tão simples quanto poderia uma obra demoníaca ser. As garrafas voam sobre o abismo oco e sujo, azulejado talvez, por onde os barmans circulam. Elas param na minha frente, esgotam-se copo acima e eu, sorvendo lascivamente o colorido do copo, me escondo da minha imagem demoníaca da obra de um ser vil. As garrafas saltam o abismo, numa tentativa desesperada, talvez, de me ajudar a me esconder de minha imagem. Mesmo estando entre mim e o espelho, elas falham em me proteger. É necessário que se arrisquem nas mãos molhadas dos barmans, sobre o piso azulejado mortal desse vão-fenda, para que possam finalmente agir com algum efeito.
O vão é grande o bastante para arriscar o estilhaçar de uma dessas garrafas corajosas e solícitas, mas não é largo o bastante para me fazer borrada o suficiente lá do outro lado, detrás das que ainda ficaram, defronte ao espelho.
O meu embaraço só é interrompido pelos flashes das camisas brancas dos barmans que deslizam sobre o azulejo assassino, do começo ao fim do balcão. Cada vez que interrompem meu vexame, aproveito o lance para me desgarrar do feitiço fraco que me prende ao outro lado do vão, àquela eu que resisto em encarar.
Levo o copo à boca.
Quando olho novamente em direção à minha imagem, tenho como se uma fotografia, estática para poder ser melhor apreciada, da minha imagem de mim mesma. E a camisa branca do barman, contrastando com o azulejo imundo e grudento, repete o processo, o flash me liberta e de novo sorvo mais um gole, que talvez seja o que me permita olhar de novo em minha direção.
Nobres amigas.
Faço jus à sua bravura de atravessar o desfiladeiro nas mãos molhadas lancinantes dos garçons apressados, e o calor de suas formas interiores rasgam minha garganta. E o meu reflexo, desenhado como as linhas das constelações observadas nos céus pelos antigos, se desenha no papiro diabólico.
Não sei se quero mais estar aqui.
O cintilante das garrafas iluminadas resguardando minha cópia se confundem com o cintilante dos meus brincos do lado de cá. Estou perdendo minha percepção. Minha imagem é maligna o bastante para me fitar lá do outro lado do vale, por entre o cintilante das garrafas escoradas no balcão, quase disfarçada, mas notadamente à minha espreita, mas não é corajosa para vir até mim, sentar-se ao meu lado e nos servir outra dose.
Mais uma vez, eu venci.
Vou para casa.
Venci — estou apaixonada.



