Prefácio
Há uma teoria, que corre por aí, segundo a qual estamos a 6 laços de amizade de qualquer pessoa no mundo. Eu gostaria que alguém achasse esses apenas seis pontos que me separam de Charles Cosac.
Digo isso porque no dia de hoje, 17 de fevereiro, terminei meu salário com 8 pães e 1 caixa de leite no mercado. Daqui para frente, serão meus pais que deverão prover meu sustento até o próximo pagamento.
Querer
Não é novidade para quem é íntimo, mas um dos meus maiores prazeres, sem carga nenhuma de exagero nessa expressão, é tomar café da manhã na padaria.
No curto período que trabalhei fazendo entregas para aplicativos, acordei num domingo e me resignei em torrar 40 reais num café completo, de uma padaria chique qualquer da cidade. Pedalei os 10 quilômetros que me separam da civilização, apertei o botão, apanhei a comanda e passei a catraca de uma panificadora, antes das 10 da manhã.
Misto-quente, café coado com leite, uma fatia de torta e um suco de laranja. É nisso que consiste. Enquanto aguardava o pedido chegar, no ruidoso conjunto de mesas, fui obrigado a escutar uma conversa da mesa ao lado.
De início, pensei em me blindar com fones, mas domingo de manhã não é o momento mais apropriado para meu cérebro ser exposto à música. De vontade própria, teria levantado dali e ido imediatamente embora, entretanto, este texto não existiria. Sou fadado a me expor a certos azedumes da tecnologia humana para continuar escrevendo, então, nada me restou a não ser sorver aquele veneno que nos traria aqui.
Era um homem lá pelos seus cinquenta anos, gordo, camisa polo, relógio dourado no braço, calvície avançada, bermuda cargo. Uma jovem senhora, sem muito apito… E uma adolescente - juro por deus - com uma tagarelice alegre insuportavelmente inabalável.
Ele, como eu esperava, fez longas perguntas à garçonete sobre o cardápio. Ela, que devia estar pagando por algo muito grave que cometeu na encarnação passada, teve que ser a vazão àquela metralhadora de palavras à qual deu a luz. Gente visivelmente com dinheiro (notem a preposição, no lugar de um pronome possessivo), vou resumir os assuntos: para qual país seria a viagem de formatura, coisas que as colegas de sala dela têm, furar a orelha e scooter elétrica.
A parte da scooter elétrica foi o que fez aquela tortura valer a pena. O uso de bikes elétricas, scooter, como queiram chamar, foi algo que me surpreendeu quando vim morar na Grande Vitória. É um artigo de larga adesão, a despeito do preço. A ciclovia beira-mar é cheia delas, muito mais que as de Curitiba. Fiquei extremamente interessado em ter uma, até saber que custam o dobro da estimativa mental que fiz. Hoje, sei que tão cedo não poderei. A menina, da mesa ao lado, só teria uma aos 18 anos, decreto do pai. Precisei ouvir toda a argumentação insistente e debochada, enfrentada com bom humor, mas dureza. Nada o convenceu: nem que todas as amigas dela tinham, nem que aos 18 ela já poderia tirar carteira e não precisaria mais de uma scooter (já que estaria na idade de ganhar um carro, rebatida pelo pai que só aconteceria após terminar a faculdade).
Lembrei de uma colega do ensino médio que, num dia letivo qualquer do terceiro ano, chegou na sala e me contou que tinha ganhado do pai um apartamento. Naquela época, essas coisas ainda não tinham peso pra mim. Mas ali, sentado ao lado daquela família, senti durante um piscar de olhos, compaixão por aquela menina. Ele disse, calmo e definitivo, que de jeito nenhum ela ganharia uma scooter porque ele tinha medo dela se machucar. Dando uma certa razão a ele, pensei onde eu estava quando tinha 14 anos, a então idade dela.
Tive compaixão porque, àquela idade, tenho absoluta e renitente certeza, que eu já tinha muito mais autonomia que aquela garota, apesar da pobreza que ela jamais vai experienciar. Tenho certeza que eu tinha, nas minhas entranhas, muito mais vivências que dão substância à vida, do que ela. À essa idade, eu tinha peito para ter um vasto repertório musical completamente reprovável, perto das músicas gospel, que meus pais gostariam que eu ouvisse. Enquanto ela ouvia do pai, numa mesa de café da manhã de um domingo, que só iria ter o que quer, na hora que quer, depois que saísse da casa dele, e tivesse pagado tudo que o devia por esses anos todos de despesas, eu desbravava a cidade de Curitiba atrás de bibliotecas, exposições e peças de teatro com o dinheiro da passagem contado no bolso.
Digo isso porque estou jogando as últimas pás de terra sobre a cova da infância que eu não tive, agora, à beira dos 30 anos. Foram anos, dia após dia, cercado de colegas de faculdade, amigos, colegas de trabalho, que tiveram um pouco ou tudo que eu quis ter na infância, para me sentir uma criança mais feliz, para ser uma criança melhor desenvolvida, para ser melhor relacionada, para me sentir mais incluída, para me sentir parte de qualquer coisa, para ter algum, um, de vez em quando, que seja, só um, alguns, quem sabe, bom desejo atendido.
Do essencial ao mais supérfluo, quando virei adulto, me deparei com um ser incapaz de desejar, tamanha a privação que sofri durante meu desenvolvimento. Levei a carcaça desse ser à terapia, cuidei, era o que eu podia fazer, porque se eu não me matei ainda, é tão e somente por ter a felicidade de, apesar das condições, ou mais precisamente, da falta delas, eu ser, hoje, alguém capaz de escrever um texto como este.
Por mais que passasse os anos letivos, de um pro outro, com um par de tênis, até que a sorte o furasse; por mais sacolas de roupas que eu recebesse de primos de segundo grau, mais velhos; por mais que eu tivesse que encapar meus cadernos e de meus irmãos com pacote de arroz, desbotado com acetona; por mais que eu tivesse que zelar por todos os brinquedos que eu encontrasse nos materiais recicláveis, trazidos de bairros nobres da cidade, pela vizinha, e dos quais ela tirava o próprio sustento; por mais que eu nunca tivesse uma viagem de fim de ano para contar nas redações “minhas férias”… Eu frustrei a miséria intelectual da qual se deduzia que eu seria vítima.
Eu já atravessava ruas sozinho.
Catarse
Naquela mesa, me senti aliviado por ter sido privado de tanta coisa, mas ainda assim, ter tido liberdade - de certa forma, lembrando que liberdade é um conceito relativo, e não existe em absoluto. Não segui os passos que meus pais quiseram. No velório da criança que eu não fui, rezei muitas vezes a pergunta: eu abriria mão da liberdade que tive pelo conforto das posses que me seduziam? Gostaria, eu, de hoje ser um adulto planificado, em troca de bens de consumo e colégios caros? Se bem-nascido, hoje, eu teria menos traumas do que tenho, por ter sido pobre?
A resposta é não. Num nível mais imediato, eu detestaria estar no lugar daquela garota, tendo que implorar coisas ao pai, e mais ainda, por me submeter ao que ele determinar para o meu futuro, e sobretudo, por ouvir ele me cobrar o que gastou comigo por me ter. (Coisas que só a maturidade trazem). Num nível mais extremo, assisto com largo conforto e catarse a entrevista de Charles Cosac à Piauí.
É um alívio imenso, para mim, ver um magnata da indústria editorial, herdeiro de uma fortuna que custou o sangue, o suor e a linfa de milhares de trabalhadores, admitir sem papas na língua, como sua infância foi privada do que ele queria. Devo confessar que gozo sabendo que alguém, capaz de literalmente pagar para trabalhar, não teve a infância que queria. É meu lado assombroso, admito também. Mas que é impagável ver e ouvir, em alto e bom som, que se eu tivesse nascido sem precisar trabalhar pro resto da vida - aquilo que mais nos define enquanto pessoas, nós, milhões de pessoas aqui de baixo, a segunda certeza que temos desta vida -, ainda poderia não ter orgulho da minha infância, é. São confissões como essa, e conversas como aquela, que me dão a força no braço para levantar mais uma pá de terra e jogar por cima do ombro onde jaz a infância que eu desejei, a minha vida inteira até agora, ter.
Veneno do sobrenome
A entrevista começa com Charles dizendo que o sobrenome parece marca de veneno. Muito me admirei. Tem algo muito poderoso no ato de um membro da classe alta que joga, assim com o braço tão esticado, os podres de sua família no ventilador. O mundico fechado de clubes, campos de golfe, prédios espelhados e lanchas não nos deixa ver nem sentir o cheiro podre de suas ações, aquelas práticas que multiplicam seus capitais nas ações abstratas da Bolsa. O seriado Mulheres Ricas e o famigerado, inconcebível, insalubre e intragável Keeping Up With The Kardashians (nunca assistirei, mas já ouvi falar muito sobre) são bons exemplos. Mas o que Charles faz vai um pouco além. No círculo dos acadêmicos das redes, suas falas foram comentadas em ampla indignação - não pelo anúncio de Charles da sua volta ao mercado editorial, mas pelo teor à la Clodovil de seus comentários.
Ali, me parece que estamos diante de uma (um tanto quanto) desesperada sessão de análise, daqueles sincericídios que a gente comete quando não aguenta mais não falar sobre um assunto. Eu, estudante de psicanálise de garagem que sou, fiquei muito surpreso com a parte que ele revela como era sua relação com seu pai.
O pai, esse ser maldito que habita em nós, seja ele o todo poderoso que nos dá regras milenares para viver, seja o pobre coitado de carne e osso, que eu só vi depois do trabalho e nos finais de semana em que ele não estava carregando peso e soldando tetos de galpões a 20 metros do chão, era de quem Charles mais se diferenciava.
Me identifiquei prontamente com a figura autoritária e dura do pai de Charles, com exceção da parte em que ele manda o filho, adolescente, para Londres, porque via que o garoto não seria heterossexual. A descoberta de minha homossexualidade não se deu com um oceano de distância de meu pai. Seu amor pelos filhos, e a inabilidade em lidar com eles, esteve muito perto toda a minha formação. Apanhei muito, sofri muito, mas não precisei de uma vida inteira, como Charles, para ouvir de meu pai que ele me ama. No caso dele, de forma muito indireta, porque se deu, conta, em uma conversa nervosa na qual ele simplesmente assume que não conseguia amar o filho.
Quer dizer, o maior ato de amor paterno que o velho conseguiu foi admitir que não conseguia amar o próprio filho. É impossível não se embasbacar com isso. Reflito muito sobre o impacto de uma criança na vida de dois adultos. Me questiono muito se pais e mães que vejo por aí estavam realmente preparados para receber seus filhos em suas vidas. A maioria das conclusões que chego é: não.
Fruto de um aborto mal sucedido, ele já chegou ao mundo mal-quisto. A mãe, um persona non muito grata na família devido aos costumes pouco ortodoxos, foi substituída no lugar da figura materna pela tia, lésbica. O pai, representante clássico do patriarcado, era um representante clássico do patriarcado: bígamo. O próprio editor fala dos mitos decadentes e hipócritas em que a família milionária era estruturada. Isso é muito revelador.
Somos soterrados por uma elite que pretende ser espelho e exemplo de moralidade; nossas leis, nossa economia e nossa cultura são reguladas por pessoas que têm a sorte de não serem reconhecidas na rua. Você conhece algum milionário? Você já viu Jorge Paulo Lehmann no shopping? Na esquina de casa? Não é à toa que grandes exploradores como ele sejam discretos. Seus domicílios fiscais não cabem nas taxas e leis de nosso país, e suas vidas privadas, eu tenho absoluta e renitente certeza, não cabem na moralidade e no julgamento de nosso povo.
Lugar nenhum
De manhã, como uma versão reduzida do café da manhã que tenho quando vou em padarias: pão, café com leite. Fiquei sabendo que, no Acre, um café da manhã típico é a Baixaria, praticamente o que é um almoço meu, um prato repleto de comidas diferentes e salgadas. Esse é um dos motivos que me fazem querer conhecer o Acre. E é assim com diversos outros estados nossos, com exceção de um.
Quem apresentou a Baixaria ao mundo “conectado” do eixo Rio-São Paulo foi a Jout Jout, aquela youtuber cacheada. De Niterói, ela morava em São Paulo quando explodiu na internet, você lembra? Sabe quem mais era de Niterói e viveu em São Paulo? Fernanda Young (descanse em paz). Aficcionado por entrevistas e biografias que sou, ouvi incontáveis vezes Fernanda dizer que largou a chatice ingrata de Niterói pra viver na efervescência cultural de São Paulo, onde “todo mundo tem um primo dark, um tio gay”. O Rio não gostou dela, sempre a “achou muito feia e indigesta”, diz.

Descendo um pouco no eixo, outra carioca que saiu de lá é Ana Paula Maia, atualmente residente em Curitiba. Autora de inúmeros livros e algumas adaptações para a televisão, minha escritora favorita viva é conhecida pela sua poética do macabro, construída com toneladas de delicadezas linguísticas. Aí já podemos fretar um lotação com placa “Saída: Rio de Janeiro / Destino: Fora Daqui”. Não é de hoje que ouço mal do Rio. A única pessoa no meu círculo de referências que ama esse lugar e o defende é Ruy Castro, biógrafo de Carmen Miranda e Garrincha. Charles Cosac é outra pessoa que achou seu lar em São Paulo.
Ele fala de Dener Pamplona, estilista “rival” de Clodovil e notória figura televisiva, que não surpreendentemente morreu em São Paulo. Por mais que as músicas o exaltem, as novelas nele sejam filmadas e o cartão-postal do Brasil o seja, o Rio, para mim, é um dos últimos destinos que quero conhecer. Mas o curioso é como Charles viu que aquela cidade não o levaria a lugar nenhum, em suas palavras. Com muito menos mundo em meu horizonte, cresci num bairro geograficamente isolado de Curitiba (do qual dou mais detalhes em Rebu com Café) que também não me cabia.
Em um dos episódios de Better Call Saul, Kim diz a outro advogado que, se tivesse continuado a vida na cidade onde nasceu, viraria esposa do filho de um fazendeiro e trabalharia de caixa no posto de gasolina de lá. Eu não teria ensino superior completo de não tivesse “saído” de lá também.
Passar sua infância em um lugar tão poluído por violências sofridas é não ter para onde voltar. Você não tem mais o berço, o início, o conforto para onde pode regressar se nada der certo. Charles volta a morar no Rio agora, em sua terceira idade, porque pode pagar pelo conforto que vai balancear os incômodos de viver num lugar que detesta. E esse é um dos motivos do meu atual desespero, uma das engrenagens da depressão contra a qual eu luto: se eu precisar, para onde vou?
Damn, it's been a long road, and the industry is cold
I'm glad my daddy told me so, he let his daughter know
My daddy told me so
(If you ain't got no money, take yo' broke ass home)
He let his daughter know
(He said, if you ain't got no money, take yo' broke ass home, you say it)
My daddy told me so
(If you ain't got no money, take yo' broke ass home)
He let his daughter know
Glamorous - Fergie
Ele conta que só atravessou a rua sozinho, pela primeira vez, sem a babá, com 13 anos. Charles Cosac só atravessou a rua de sua casa no Rio de Janeiro, sozinho, com 13 anos. Qual será o real peso e a real medida de cada uma das nossas experiências? Saio do próprio corpo (principalmente quando fumo um) imaginando como são vastas as possibilidades da experiência humana e, no final das contas, na aritmética limitada da nossa razão, nenhuma outra vida vale a pena ser vivida que não seja a nossa.
Fim das contas
Por mais colorida e fantasiosa que seja a vontade de estampar uma Caras um dia (para uma maioria das pessoas), ela é só isso, uma fantasia. Com o tempo assentando os dias, os anos e as rugas (e terapia também), a gente se pega entendendo que o melhor mesmo é habitar a nossa carne, lembrar das nossas lembranças, brigar com os nossos inimigos ocultos, que por mais chatos que sejam, ao final do dia vemos que são incompetentes - citando Rita Lee.
Velemos tudo que precise ser velado, semeemos tudo que queremos colher e colhamos tudo que uma hora plantamos, podre ou comestível. Na briga pela resposta definitiva à pergunta se somos livres ou não, fico com Spinosa na boca de uma pessoa muito mais de carne e osso, Nany People: só somos livres para escolher a prisão na qual queremos estar. Bilionários ou pobres à parte, todos temos nossa parcela de miséria humana.
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Obrigado pela sua leitura!
Gostei demais do seu texto. Hahaha e olha que sou (o quanto posso ser de algum lugar) do Rio, moro no Rio e se puder nem do meu bairro saio.
Mas é irrelevante, né. Gosta quem gosta, não gosta quem não gosta e tá tudo bem assim.
Em compensação, gostei demais do que você falou da entrevista do Charles Cosac. Já ouvi duas vezes e suspeito que outras ainda virão. É, como você diz, sincericida. Cândida. Direta. Um espetáculo de entrevista que seus companheiros de classe social devem ter detestado.
Eu tava focada em assinar news de mulheres. Ler outras mulheres e assinar mulheres. Aí pinga esse texto rico na minha tela e la fui eu, cliquei no botão de assinar (e nem foi no automático, hein!) Obrigada pelos levantamentos e pela não conformidade com os conformes usuais pra falar do que se sabe e se aprendeu. Amei a ideia de enterrar a infância que não teve. Foquemos no presente pq nem a ilusão do futuro nos abrange mais.