Era uma criança com um mundo próprio. Pouco do que acontecia fora dele, conseguia entrar e permanecer ali.
Mas quando algo chegava àquele mundo, ficava para sempre. Ficou. Talvez não tão à vista, mas ficou. De tempos em tempos, aquela criança acha tesouros meio empoeirados e se diverte muito.
Num dezembro ou janeiro qualquer, foi pássar um tempo na casa da vó, dar descanso para os pais. Injusto dizer dessa forma, pois não era de dar trabalho algum. Não entenda mal. Mas foi, porque a tia, irmã mais nova do pai, era só três anos mais velha. Ele, mais criança, de 95; a tia, mais mocinha, já em idade escolar, de 92 - temporona. Teria companhia para brincar e um mundo novo para conhecer em outra cidade. E conheceu.
A começar pela vó.
“Minha vovó
Segunda mãe
Te amo tanto, gosto de você!
Cabelos brancos,
Conta histórias
É carinhosa, minha vovó…
Cuidou tão bem da mamãe
Cuidou tão bem do papai
Quando eles eram pequenos, levados assim como nós
E se hoje é dia das mães
Também é dia da vovó
Vovó é mamãe duas vezes
Um beijo eu quero lhe dar!
2x”
Professora Maria Euza, de Ensino Religioso, era quem ensaiava as músicas a serem cantadas nas datas comemorativas do calendário escolar. A criança aprendia todas. A jovem senhora escrevia as letras de ouvido - com canetão verde e vermelho, escutadas de uma fita cassete tocada no raro stereo da escola - em uma longa folha de papel pardo, colada ao quadro e repetida à exaustão. Vinte anos depois, a música ainda está na ponta da língua. Não é por menos.
Quando saiu da escola naqueles dias, a criança ficou se perguntando como seria uma música sobre a sua avó. Consciente do que ouvia repetidas vezes junto com seus colegas, sabia que aquela “vovó” da música não tinha nada a ver com a sua.
Primeiro que ela não deixava ser chamada de vovó, era vó e pronto. O monossílabo tônico que se virasse nos 30 para carregar todo o significado daquela mulher. Cabelos brancos? Jamais. Os seus eram religiosamente retocados de Preto Azulado no Salão da Josi, passando os trens.
Eu explico. O bairro onde a vó morava, nessa cidade distante, era separado do resto da cidade por um extenso e movimentado pátio de triagem dos trens e locomotivas da antiga América Latina Logística - ALL, empresa de logística ferroviária que operava no país e em terras hermanas. Para fugir dos cabelos brancos, ela marcava horário no salão para depois das 13h. Assim, podia deixar a tia na escola e, na volta, passar a tarde fazendo cabelo e unhas. Em breve eu conto o porquê.
Para sair de casa, colocava um de seus tantos tamancos (todos de salto), se banhava em hidratante Monange, penteava os cabelos, passava seu batom vermelho (obrigatório), apanhava sua bolsa e ia, com filha e neto a tiracolo, pular 6, 14, 17, até 20 trens que poderiam estar parados aguardando inspeção, separando a vila onde morava - uma favela com praticamente nenhuma estrutura urbana -, do bairro plenamente urbanizado onde a pequena estudava, e onde seu salão de confiança ficava.
Sim, ela passava entre um vagão e outro calçando tamancos. De salto. A tia da nossa criança, maior e mais desenvolta, atravessava os engates dos trens com facilidade, tamanha a prática que tinha. Os duzentos dias do calendário escolar incluíam aquilo, quer fizesse chuva, quer fizesse sol. A criança, por sua vez, mais débil e menos acostumada com aquelas máquinas monstruosas pensando toneladas, entrava em pânico. Toda a ginástica de onde pisar, segurar, apoiar, segurar de novo, pisar e saltar era um inferno para o visitante daquele mundo. Ainda mais por ter que ser feito, o ato, repetidas vezes. Choro e birra eram comuns. Cogitava voltar para a casa da avó e passar, lá, a tarde toda sozinho, tudo, menos atravessar entre vagões de trens. Era a avó, com sua força de dona de casa que, já do outro lado, pisava entre os trilhos, encostava a barriga nos engates e erguia os braços para agarrar a criança pela cintura, evitando o iminente esperneio que teria que aguentar. Seus cabelos brancos não poderiam esperar. O sinal da escola da tia iria tocar em cerca de 25 minutos. Oito, dez, onze, quantas vezes precisasse. Quantos trens estivessem entre seu neto e suas unhas rebu com café.
Deixada a tia na escola, ela passava em alguma venda para comprar a tinta, emprestando os olhos da criança que aprendera a ler em casa, antes de ser matriculada. Todas essas lembranças são anteriores à vida escolar. Em frente à escola da tia, vendo aquele mar de crianças, o neto ficava imaginando o que faziam todas elas juntas, durante uma tarde inteira, todos os dias. Tinha uma certa agonia de tanta gente junta. Preferia ficar em casa, junto da vó, ouvindo música sertaneja e conversando na área de casa com as vizinhas.
A cabeleireira-manicure-pedicure guardava um mundo no qual a criança esperava ansiosamente para visitar. Àquela altura, pensando bem, até tinha compensado gastar os pulmões no berreiro para atravessar as linhas dos trens. Tudo ali era interessante. A vó ia conversar coisas de adulto com a profissional e a criança podia descobrir e estudar tudo que tinha ali. O secador de penteados, o pôster de creme para cachos com Isabel Fillardis, a estufa com inúmeras ferramentas de cutucar, cortar, lixar, tirar cutículas das unhas, os sedosos pincéis de maquiagem, as espinhosas escovas para alisar, encaracolar, esticar, pentear, modelar e dividir cabelos… Não acabava.
Os esmaltes eram uma biblioteca de cores, texturas e cheiros. Se você não pisou nos anos 90, venha cá, aprenda algo muito importante agora: esmaltes significavam coisas. Vou dar só dois exemplos. Quando uma mulher queria algo mais discreto, comportado e com recato, a pedida certa era Renda. Sim, as cores de esmalte têm nomes. Renda com francesinha branca era um dos grandes clássicos. Se você não sabe o que é uma francesinha, informe-se. A nossa criança aqui da história só tem 6 anos e já sabe. Outro grande clássico era o Rebu com Café. Em um daqueles dias, a vó pediu esse. O nome grudou e jamais saiu da cabeça da criança. Era como a voz de deus nas pedras dadas a Moisés, gravadas para todo o sempre. Consistia em uma camada de esmalte Café (marrom escuro, praticamente preto), com Rebu sobre ela (vermelho translúcido). Essa era a combinação das perigosas. Era chique? Sim. Era pra pegar marido? Também. É nesta hora que eu preciso contar porquê aquela “vovó” estava no Salão da Josi. Como vocês podem imaginar, não era para fazer tricô, até porque ela não sabia nenhum desses artesanatos com agulhas.
Era iria no bailão.
Forféu (for.feu - subs.): uma palavra informal que significa falta de ordem ou organização. Por exemplo, "Essa festa tá um forféu!".
Forféu pode também significar: Bagunça, Confusão, Encrenca, Complicação.
A palavra forféu deriva do francês "forfait", que significa penalidade ou punição.

Quando eu cheguei na casa dela e comecei a conhecer aquele vasto mundo novo do bairro que ela mora, que não tem nem 5 quilômetros de extensão, fiquei fascinado. Ela reinava. Um dia, chegaram no portão e perguntaram:
- A Forféu tá em casa?
Fiquei sem saber o que responder. Quem??? E quem mais poderia ser? Esse era o apelido dela no bairro inteiro. Era impossível alguém não conhecer a Forféu. Eu, que não morava com ela, comecei a descobrir naquele dia quem ela era. “Quem” não, porque ela não era uma pessoa. Forféu era um evento.
Sua casa, na Rua Principal, era ponto de encontro das amigas do bailão, crianças, mascates, bêbados, trombadinhas, idosos, vizinhos, parentes dos vizinhos, filhos dos vizinhos e conhecidos dos vizinhos. Todo mundo TINHA que conhecer a Forféu. E todos, sem tirar nem por, a respeitavam, e respeitavam sua casa, não interessasse quem fosse. Ninguém desaforava ela, porque sabia que o barraco não seria pequeno.
O café sempre estava na garrafa térmica e ninguém precisava tirar os chinelos que acabavam de pisar na rua de saibro: limpeza sempre foi o sobrenome dela e faxina, quando era dia, todo mundo sabia que ela estava fazendo. O tapetão da sala era estendido no portão e escovado à exaustão, enquanto as roupas secavam no varal, trazidas do tanque nos fundos do grande quintal e estendidas ao sol. A água que ela jogava no chão da casa escorria porta afora, e os passantes a cumprimentavam pulando as poças cheias de espuma que ficavam na rua. Ela respondia a todos com a vassoura ou o rodo nas mãos.
Sua diversão era bater papo tomando café e batendo um bolo de fubá no meio da tarde (se fosse dia de semana), e tomar uma cerveja ou vinho com coca-cola, se fosse sábado, domingo ou feriado. O rádio, com duas caixas de som da altura das suas coxas, tocava discos, FM, fita cassete e 5 cds. Não é à toa que eu tenho na memória, ao contrário da minha vontade, todas as músicas de Zezé Di Camargo e Luciano, Rick e Renner, Milionário e José Rico e Gian e Giovanni. As do Amado Batista eu aprendi pelo rádio da Dona Marta, sua vizinha da frente, de igual potência, que aliás, era quem mais a acompanhava nos bailões e nas canhas.
Depois de todo o ritual no Salão da Josi, ela voltava pra casa de chinelos-de-dedo, pra não borrar as unhas recém-feitas de pés e mãos, e ia se aprontar pra dançar até sabe deus que horas da noite. Quando ela voltava, eu e minha tia já estávamos dormindo, e no outro dia ela ia fazer 6 ou 7 pães caseiros enormes, sovados no braço sobre a mesa da cozinha, enquanto eu comia um pedaço da massa que ela me dava, crua mesmo.
Outro programa da tarde era ir aos botecos do bairro, tomar cerveja e conversar com as vizinhas. Ela me levava e deixava eu brincar por ali, enquanto escutava a conversa e gargalhadas altas dela.

De volta à casa dela, eu me divertia mexendo na sua caixa de costura, depois de ter ajudado a passar a linha no buraco da agulha, pra ela consertar alguma cortina ou peça de roupa. Esse era o máximo de artesanato que ela fazia. Ao invés de bordar, tricotar e fazer crochê, ela sabe muito melhor carpir um quintal, arear panelas e bater roupa no tanque, coisas que envolvem muito mais força de braço. Cresci vendo ela e minha mãe com suor no rosto para deixar tudo limpo e organizado pra família, sendo mais macho que muito homem. Se hoje eu sei fazer pão sem receita, cozinhar, organizar as coisas e terminar o que eu começo, é porque elas me ensinaram.
Crescer sendo neto da Forféu me ensinou a admirar mulheres fortes, ao invés de ter medo delas.
Em um dos discos que ela emprestou a um amigo, do Teodoro e Sampaio, escreveu
“Emprestar é um prazer, devolver é um dever”
e eu nunca esqueci dessa frase. Como nunca esqueci de nada que ela me ensinou tanto. Ela sempre falou que foi nascida e criada no ditado popular brasileiro, e ela sabe todos. Hoje, eu falo ditados que ela dizia quando eu era criança e fica todo mundo sem entender. Tem coisas que a gente só entende depois que cresce, como ditados, porque ela tinha aquele apelido e o que é Rebu. E eu tenho a sorte imensa de ser neto dela.
Hoje, no dia em que ela completa 71 anos, nada mudou. Ninguém continua autorizado a chamar ela de velha, nem por ela, nem por mim. Os cabelos continuam pintados, e o recinto sempre fica inundado com o perfume dela. A Forféu não passa desapercebida em nenhum lugar. Aonde ela vai, você sabe que ela tá ali. Ela faz e acontece.
Desde daquele dia que chamaram a Forféu no portão e eu não sabia quem era, eu fiquei me perguntando o que “forféu” significava. Ué, por que chamam ela assim? E os anos foram respondendo essa pergunta, não importa realmente o significado da palavra, ainda que ela faça jus a todos os significados que a palavra tem. Não é à toa que chamavam ela de uma palavra que vem do francês. Ela sempre foi podre de chique, até quando não podia. É impossível não lembrar dela dizendo que até quando morou em casa de chão de terra, podia-se lamber o chão de tão limpo que era.
Hoje, entendendo que não existe apelido mais perfeito para ela do que esse, acho que sei qual música seria melhor ter cantado para ela na escola, naquele dia das mães, porque se aquela música lá do início lembrou a sua avó, uma senhora calminha, de óculos e cabelos brancos, bengala e meias de compressão, sinto muito por você. A minha vó é muito mais legal.
Ela é Tieta, que não foi feita da costela de Adão.
Ela é a Morena Rosa, maquiada de rouge e batão.
Ela é Gostosona.
Gostosona sai na rua, assanha a rapaziada
Seu rebolado é igual uma cobra mal matada
Ela usa saia curta, ela arrasa, ela detona
E o povo grita em coro
Ela é mesmo um tesouro, a danada é gostosona
A Forféu, que nasceu Ivonilda Brasilina de Freitas, a Vanilda, Vanilde, graças a Deus, é minha vó.
Te amo. Feliz Aniversário!